DIRCEU BARROS

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A mulher vaidosa.



A vaidade se resumia no banho tomado após um dia como dona de casa. Um dia como dona de casa se resumia no preparo do café da manhã do marido e dos tantos filhos, na limpeza da casa, na arrumação das crianças para a escola, no preparo do almoço, na retirada da mesa, na limpeza das louças, na lavagem de roupas, no ferro de passar, na recepção dos filhos e do marido -vindos de suas batalhas na escola e no trabalho, no preparo do jantar, no servir da refeição, na lavagem das louças, no ouvir das lamúrias de mais um dia de trabalho do marido, e das novidades das crianças. O banho era a vaidade única, um luxo para consigo mesma.

A TPM se dissolvia a qualquer hora do dia, na retirada das vísceras de um peixe para o almoço, ou no esfregar de uma roupa no tanque áspero, na costura de uma roupa rasgada, ou no sorriso de um filho, cuja febre ela venceu. Discutir relação significava conversar sobre o orçamento familiar, sobre as demandas das crianças, as necessidades do marido. Planos, era o de poder ter mais um dia como dona de casa, sem sustos, sem surpresas. Sonhos, eram de saúde, de poder ver os filhos crescerem. Felicidade, era saber que toda a família dormia em segurança, enquanto ela se dava ao luxo de se banhar.

A vida seguia o seu curso, e os filhos cresceram. A doença cobrou o preço por tanto labor, por tanto amor, por tantos cuidados com a família. A morte veio serena, e lhe deu o descanso merecido, e conservou em seu rosto o semblante de paz, sem nenhum vestígio de dor, culpa ou sofrimento. Seu exemplo, mais do que suas palavras, forjou pessoas de bem, que a colocaram no altar de suas memórias. Á ela, o marido logo se juntou; talvez, com a desculpa de um mal oportunista; na realidade, não suportou a ausência de sua esposa amada, de sorte a continuar, pela eternidade, com a sua vaidosa mulher.


Imagem: Lú Ramos: Atelier da pintura
Lu

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A curva.




Passeios na infância em periferia de cidades pequenas podem ser profundamente marcantes nas mentes impressionáveis de crianças. Numa caminhada dessas, ao passarmos por uma curva de uma estrada, deparamos, eu, e um grupinho de amigos com o que parecia ser um rolo de fumo, imóvel sobre uma pedra. Ao nos aproximar do “objeto”, demos de cara com uma cobra coral, e o susto, a curiosidade, a adrenalina, e os momentos de alegria trazidos pelo evento criaram uma imagem indelével da minha infância.

Anos depois, já adulto, tive que matar a minha curiosidade de voltar àquele lugar, e para a minha decepção, ele não mais existia, não do jeito que estava nas minhas lembranças. A modernidade transformou a estrada numa avenida, e um condomínio de luxo expulsou qualquer vestígio rural do local. O lugar passou a existir somente na minha memória, sem sequer uma fotografia para comparar com a minha imaginação; uma transformação que marcou fortemente a noção do efêmero para mim.

Em dias como os atuais, quando o que escrevo pode ser lido simultaneamente na Austrália e no Havaí , e a presença humana invade áreas cada vez mais extensas no globo terrestre, as lembranças de muitas curvas vão sendo levadas de roldão. E as  piores são as curvas perdidas dos reencontros, quando depois de nos apartarmos de pessoas com quem compartilhamos adrenalina e alegrias, confirmarmos   que já não somos mais os mesmos, e que as afinidades de outrora não passam de lembranças, substituídas que foram por transformações que não se reduzem ao plano físico.

E assim, de curva em curva, todas as experiências começam a se extinguir em frágeis impressões; e todos os elos começam a se partir,  em desconcertante desapego. As transformações, físicas ou pessoais, são análogas ás que ocorreram ao redor da curva da estrada  da minha infância. Até que um dia a própria memória resolva nos pregar uma peça final, e apagar qualquer curva das nossas recordações.



sábado, 1 de outubro de 2011

O vício cumpre um papel na evolução humana?


Ao ler o artigo How we get addicted, de Michael D. Lemonick, de 2007, do então articulista sênior de Ciência revista Time em Nova Iorque, onde o autor afirmou que “O vício é um comportamento tão  prejudicial, que na verdade,  a evolução deveria ter há muito tempo tê-lo exterminado da população: se já é difícil simplesmente dirigir de forma segura sob a sua influência, imagine tentar fugir de um tigre dente de sabre ou caçar um esquilo para o almoço”, depara-se com uma questão intrigante. O vício cumpre um papel na evolução humana?

O homem, em escancarado conflito com a natureza, e predador contra seu próprio meio-ambiente, passa ao largo da compreensão das suas leis, e por mais estranho que possa parecer, o vício pode ser um componente essencial na evolução humana, e sem o qual, talvez ainda habitássemos as cavernas. Isso se não já estivéssemos extintos. Uma simples reflexão sobre fatos cotidianos podem apontar nessa direção, e pelo polêmico e paradoxal que a idéia encerra, os becos sem saída ambientais ao quais nos encaminhamos, por exemplo, demonstram algo de falho na percepção da evolução.

O comportamento humano, desde os primórdios, foi afetado pelo vício, e esse, afetou de forma decisiva a evolução das sociedades. Um religioso, que afirmou ter conversado com anjos no deserto, e recebido “a palavra de Deus”, poderia estar sobre efeito de ópio, mas os seus delírios forjaram civilizações, e miríades de religiões ao redor do mundo. No plano individual,há escritores contemporâneos que afirmam precisar do tabaco, na hora de escrever, para realizar sinapse; há homens que, encorajados pelo álcool, desfazem casamentos infelizes, e se reencontram num outro relacionamento. Isso sem mencionar as realizações nas Artes, na Música, e na Arquitetura, e toda a industria que demanda criação, onde o uso de drogas lícitas ou ilícitas está claramente evidenciado.

Em que pese os prejuízos para as sociedades o abuso que o vício traz, e não são pequenos, remanesce a pergunta: O vício cumpre um papel na evolução humana? Se não, por que ele não foi exterminado no processo evolutivo? Não estaria justamente aí um objeto de estudo que traria um novo olhar sobre a evolução? Nos caminhos da humanidade deve haver algumas coisas que ignoramos, ou fingimos ignorar, mas é precisamente essa percepção que pode dar dicas para se evitar um futuro sombrio. É encarando as sombras do mundo atual. Para isso é preciso coragem. Coragem e cachaça para desbravar o oeste da nossa existência.





Imagem: Ian Haig